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MONSTRUÁRIO, o baralho
Toda a obra de Ducasse é um gigante bestiário: junta técnicas de escrita automática, fórmulas impossíveis, joga as palavras com outras sem ordem, estende metamorfoses intermináveis, rouba, crie a volta a roubar, e monta uma grande mensagem asémica. Apenas algumas vezes a palavra besta aparece nos Cantos de Maldoror, mas o texto está cheio delas. Na maior parte das vezes, a besta é o próprio homem, mas pode ser um escaravelho, um polvo, ou um tubarão. Anjos, Vaginas, Pénis, Deus e o Homem não foram contemplados nesta colecção, apesar de direito lhe pertencerem honorariamente.
O zoo pessoal de Lautréamont personifica-se variadas vezes nas suas célebres enunciações do “belo como”, que não dizem apenas respeito a animais grotescos, mas também a situações estranhas. Numa delas, Lautréamont define-se a si próprio: triste como o universo, belo como o suicídio.
A única diferença com algum dos bestiários medievais é que Lautréamont sabia o que descrevia. Mas o objectivo tornou-se no mesmo: conduzir a imaginação a estados irreparáveis, sempre pela figura de Maldoror. Em grande parte da obra é poesia pura e dura, um enorme monstruário. Mesmo que por vezes a obra seja um percurso entre as trevas, ou contra ela, é um percurso pagão.
Se o pensamento humano tende a mover-se ao longo de linhas bipolares, o que salva Maldoror desta polaridade é a sua metamorfose. Maldoror não é um herói, mas vários heróis, múltiplo na sua forma e nas suas atitudes. Durante o curso do livro, transforma-se numa variedade de animais, gozando da faculdade de assumir formas mesmo irreconhecíveis por olhos experientes. Como um texto alquímico, só há dualidade. Ou há virus, ou há beleza. Vê-se a sua época maltratada: Maldoror personifica o autor maldito, monstro humano, desobediente, um humúnculo persistente. Estes desenhos servem para procurar o belo no feio, destruir para obter forma, e serve como uma pequena poção para o jogo contínuo. Leonardo dizia que o vício que não pode estar onde está a virtude. Falso. A época de Lautréamont também é a nossa.