Desenho para um poema de José Miguel Silva, na Cão Celeste #6.
FIM
Enquanto confundíamos o belo
com o fácil e o fácil com o bom,
numa sociopatia de narcisos
viciados em picões de dopamina,
a nossa casa natural apodrecia
como o ventre das abelhas quando passa
o glifosato da ganância liberal.
Enquanto amealhávamos promessas
de crescer eternamente, numa torpe
miopia de peritos em feitiços
financeiros, enfeitávamos com fitas
de sucesso o extermínio de culturas
ou espécies concorrentes com a nossa
e destruíamos o mundo por dinheiro
Enquanto varejávamos a árvore
da vida cientista e vendíamos
os frutos à elite conserveira,
amontoávamos gordura no bestunto
cortical, a mercancia de muletas
prosperava e ninguém via a ligação
umbilical entre saber e destruir.
Enquanto omitíamos limites,
travestidos de titã desenfreado,
e celebrávamos a mancha do progresso
e almoçávamos petróleo (pensando
que comíamos cozido à portuguesa!),
entropia entrava em cena e declarava,
terminante: “Acabou a brincadeira”.
Enquanto levantávamos estátuas
a Húbris ou à mãe da ironia,
o carbono cumulava-se em medusas
de dióxido marinho, rabiscava
“cataclismo”no azul dos festivais
e o metano libertado da Sibéria
preparava o seu discurso de vitória.
Enquanto no cinema fumegavam
as cortinas e o filme apocalíptico
passava para as ruas, a espécie
racional repudiava a evidência
da catástrofe, brandia o seu bilhete
como carta de nobreza, proclamava
o seu direito a divertir-se até ao fim:
“Não saímos!” E de facto não saíram,
nem podiam – chefiados por impulsos
de lemingue, por quimeras de calor
industrial, pelo bíblico preceito
de surfar o vagalhão das energias
decrescentes, só podíamos seguir
o planograma do genoma e perecer.