Capa e texto para a edição comemorativa dos 40 anos da Antígona.
Impressa em tipografia na oficina O Homem do Saco.
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Não poderia haver melhor trouxa de conforto para terminar uma singela celebração minha – míseros quarenta anos sempre a olhar para nenhures – do que outra celebração de outros quarenta anos – esta, faustosa, gorda e alegre, com uma pança rebolada na chouriça da edição e no vinho do joie de vivre.
De todas as combinações absolutas neste mundus ficticius literarius terroris – linguísticas, prática da crítica, contracultura e erotismo – não imagino outra figura que pudesse melhor vesti-las: a Antígona.
Ninguém mais me ensinou uma marca de algum caminho. Quantas vezes escutei, sobre os seus títulos: «Esse é bom para viver numa ilha deserta…» Nada disto faz sentido, mas a Antígona explicou esse despropósito. Respigou até desejos contraproducentes que jamais alguma escola se atreveria a explicar: que um lugar ao sol, esse da Minima Moralia, não é um lugar de bem, e onde num outro lado (deste) está o crime e o roubo, o desejo e a libertinagem. A saber:
A crítica é uma escola de cadáveres de caracteres. Faz-se não estando, não praticando e aparecendo apenas quando alguém te pede para dançar. Dos cínicos, espera-se sempre que não tenham bens; dos intelectuais, uma barba descuidada e um cão; dos ascetas, a falta de necessidades materiais. Alguns praticam como pepitas cada um destes desportos em forma de maratona. Alguns, sem prática alguma, mas com instinto e dentes aguçados, tornam-se sábios arranjadinhos com três nomes sonantes do banco de trás do Jaguar – o
da família. E aí aparecem os sábios da crítica, os descrentes dos conceitos, livres das coacções de escola (Sloterdijk), como se tivessem vergonha de saborear um bom vinho, mesmo que caro.
A estética, essa bajulação autocrática que nos davam de mansinho nos últimos respiros das belas-artes, serviu para pouco mais do que frivolidades peçonhentas. As verdadeiras belas-artes rosnavam à propensão narcisista do culto: sairiam de jorro, como se a torneira estivesse trilhada pelos sapadores académicos. Deixaram-nos a todos com os tomates enlatados (Péret). Restaram alguns camaradas que compreenderam este nomadismo individual. E a vida surgiu logo na página seguinte.
O protesto nunca poderá ser sindicalizado, porque se torna uma armadilha excursionista. Assim sendo, a pele de contrabandista deveria vestir-nos bem a todos, se de espírito livre vivermos.
O Estado é um cofre de segredos armadilhado, um engenho complexo
(Arenas), onde nem todos se lembram do código de acesso.
Não perdoa o absentismo activista, quando até os activistas são partidários da situação actual. Não perdoa a divulgação dos seus documentos confidenciais, a menos que sejam fake news. Não perdoa ingerências, porque seremos sempre culpados ou suspeitos.
A literatura que nos ensinaram a reverenciar é uma figura corcunda.
A que saboreamos na Antígona é mandrana, que arruína o bem-estar do mundo e vive na gandaia.
Dois nomes sem filigrana: Luís Oliveira – o editor bailarino galanteador.
Imagino-o numa qualquer pintura de Bruegel – por exemplo em Jogos de Crianças –, onde se comungam desejos insidiosos de um tempo jovial e onde se foge aos jogos de poder, mas onde alegremente se urina para a lua. Ali está ele e a Antígona (e nós), a brincar à macaca no recreio maior, quando das janelinhas os obstipados atiram pedrinhas de mal e dor.
Para a Antígona, com amor.
Ricardo